sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Porta Chaves - Melro em feltro

O Melro, de Guerra Junqueiro, é um dos poemas que mais me impressionaram no começo da minha adolescência.
A primeira vez que o li, há mais de 40 anos! fiquei em estado de choque, diante da sua trágica beleza.
Ele é intenso, provocante e desconcertante, ferino e actual na sua critica aos hipócritas de todos e credos e crenças. Guardei religiosamente o seu livro.
Bem sei que é um poema ENORME! mas vale a pena ler...e espero que se emocionem, é bom sinal..sinal que há algo de bom ainda em nós. Há Esperança...em nós.

O Melro.
O melro, eu conheci-o:
era negro, vibrante, luzidio, madrugador, jovial;
logo de manhã cedo começava a soltar, dentro o arvoredo,
verdadeiras risadas  de cristal.
E assim que o padre cura abria a porta
Que dá para o passal,
Repicando umas finas ironias,
O melro, dentre a porta,
Dizia-lhe "Bons Dias"!
E o velho padre cura
Não gostava daquelas cortesias.

O cura era um velhote conservado,
Malicioso, alegre, prazenteiro;
Não tinha pombas brancas no telhado.
Nem rosas no canteiro;
Andava às lebres pelo monte, a pé
Livre de reumatismos,
Graças a Deus, e graças a Noé.
O melro desprezava os exorcismos
Que o padre lhe dizia;
Cantava, assobiava alegremente
Até que ultimamente
O velho disse um dia:

"Nada, já não tem jeito! este ladrão
Dá cabo dos trigais!
Qual seria a razão
Porque Deus fez os melros e os pardais?!"

E o melro, no entretanto,
Honesto como um santo,
Mal vinha no oriente
A madrugada clara,
Já ele andava jovial, inquieto,
Comendo alegremente, honradamente,
Todos os parasitas da seara
Desde a formiga ao mais pequeno insecto.
E apesar disto, o rude proletário,
O bom trabalhador,
Nunca exigiu aumento de salário.

Que grande tolo o padre confessor!

Foi para a eira o trigo;
E armado uns espantalhos
Disse o abade consigo:
"Acabaram-se as penas e os trabalhos."
Mas logo de manhã, maldito espanto!
O abade, ainda na cama,
Ouvia do melro o costumado canto,
Ficou ardendo em chama;
Pega na caçadeira,
Levanta-se de um salto,
E vê o melro, assobiar, na eira
Em cima do seu velho chapéu alto!

Chegou a coisa a termo
Que o bom do padre-cura andava enfermo,
Não falava nem ria,
Minado por tão intimo desgosto;
e o vermelho oleoso do ser rosto
Tornava-se amarelo dia a dia.
E foi tal a paixão, a desventura,
(Muito embora o leitor não me acredite)
Que o bom do padre-cura
Perdera ... o apetite!

Andando no quintal, um certo dia,
Lendo em voz alta o Velho Testamento,
Enxergou por acaso (que alegria!
Que ditoso momento!)
Um ninho com seis melros, escondido
Entre uma carvalheira.

E ao vê-los exclamou enfurecido:

"A mãe comeu o fruto proibido;
Esse fruto era a minha sementeira;
Era o pão, e era o milho;
Transmitiu-se o pecado.
E, se a mãe não pagou, que pague o filho,
É doutrina da Igreja. Estou vingado!"

E, engaiolando os pobres passaritos,
Soltava exclamações:
"É uma praga. Malditos!
Dão-me cabo de tudo estes ladrões!
Raio os partam! andai lá que enfim ..."



E deixando a gaiola pendurada,
Continuou a ler o seu latim,
Fungando uma pitada.


Vinha tombando a noite silenciosa;
E caía por sobre a natureza
Uma serena paz religiosa,
Uma bela tristeza
Harmônica, viril, indefenida.
A luz crepuscular
Infiltra-nos na alma dolorida
Um miticismo heróico e salutar.
As árvores, de luz ainda doiradas,
Sobre os montes longinquos, solitários,
Tinham tomado as formas rendilhadas
Das plantas dos herbários.
Recolhiam-se a casa os lavradores.
Dormiam virginais as coisas mansas:
Os rebanhos e as flores,
As aves e as crianças.

Ía subindo a escada o velho abade;
A sua negra, atlética figura
Destacava na frouxa claridade,
Como uma nódoa escura.
E introduzindo a chave no portal
Murmurou entre dentes:

"Tal e qual...tal e qual!...
Guisados com arroz são excelentes."



E nisto o melro foi direito ao ninho.
Para o agasalhar, andou buscando
Umas penugens doces como arminho,
Um feltro acetinado e brando.
            Chegou lá, e viu tudo.
Partiu como uma flecha; e, louco e mudo
Correu por todo o matagal; em vão!
Mas eis que solta de repente um grito
Indo encontrar os filhos na prisão.

“Quem vos meteu aqui?!” O mais velhito
Todo tremente, murmurou então:

“Foi aquele homem negro. - Quando veio,
Chamei, chamei… Andavas tu na horta…
Ai que susto, que susto! Ele é tão feio!…
Tive-lhe tanto medo!… Abre esta porta,
E esconde-nos debaixo da tua asa!
Olha, já vão florindo as açucenas;
Vamos a construir a nossa casa
            Num bonito lugar…
Ai! Quem me dera, minha mãe, ter penas
            Para voar, voar!”

            E o melro alucinado
            Clamou:

“Senhor! Senhor!
É porventura crime ou é pecado 
Que eu tenha muito amor
            A estes inocentes?!
Ó natureza, ó Deus, como consentes
Que me roubem assim os meus filhinhos
            Os filhos que eu criei!
Quanta dor, quanto amor, quantos carinhos,
            Quanta noite perdida
            Nem eu sei…
            E tudo, tudo em vão!
            Filhos da minha vida!
            Filhos do coração!!!…
Não bastaria a natureza inteira,
Não bastaria o céu para voardes,
E prendem-vos assim desta maneira!…
            Covardes!
A luz, a luz, o movimento insano
Eis o agulhão, a fé que nos abrasa…
            Encarcerar a asa
É encarcerar o pensamento humano.
A culpa tive-a eu, a culpa à noitinha
            Parti, deixei-os sós…
A culpa tive-a eu, e a culpa é minha,
            De mais ninguém!… Que atroz!
            E eu devia sabê-lo!
Eu tinha obrigação de adivinhar…
Remorso eterno! Eterno pesadelo!…


Falta-me a luz e o ar!… Oh, quem me dera
Ser abutre ou ser fera
Para partir o cárcere maldito!…
E como a noite é límpida e formosa! 
Nem um ai, nem um grito… 
Que noite triste! Oh noite silenciosa!…”

E a natureza fresca, onipotente,
            Sorria castamente
Com o sorriso alegre dos heróis.
            Nas sebes orvalhadas,
Entre folhas luzentes como espadas,
            Cantavam rouxinóis.

            Os vegetais felizes
Mergulhavam as sôfregas raízes
A procurar na terra as seivas boas,
Com a avidez e as raivas tenebrosas
Das pequeninas feras vigorosas
Sugando à noite os peitos das leoas.
A lua triste, a lua merencória,
            Desdémona marmórea,
Rolava pelo azul da imensidade,
Imersa numa luz serena e fria,
            Branca como a harmonia,
            Pura como a verdade.
E entre a luz do luar e os sons e as flores,
Na atonia cruel das grandes dores,
            O melro solitário
Jazia inerte, exânime, sereno,
Bem como outrora a mãe do Nazareno
            Na noite do calvário!… 
Segundo o seu costume habitual,
            Logo de madrugada
O padre-cura foi para o quintal,
Levando a bíblia e sobraçando a enxada.
            Antes de dizer missa,
O velho abade inevitavelmente
            Tratava da hortaliça
E rezava a Deus Padre Onipotente
            Vários trechos latinos,
Salvando desta forma juntamente
As ervilhas, as almas e os pepinos.

E já de longe ia bradando:

                        “-Olé!  
            Dormiram bem?… Estimo…
            Eu lhes darei o mimo,
Canalha vil, grandíssima ralé!
Então vocês, seus almas do diabo,
Julgavam que isto que era só dar cabo,
            Da horta e do pomar,
E o bico alegre e estômago contente,
E o camelo do cura que se aguente,
Que engrole o seu latim e vá bugiar!...
Grandes larápios!.. Era o que faltava.
            Vocês irem ao milho
            E a mim mandar-me à fava!
Pois muito bem, agora que vos pilho
Eu vos ensinarei, meus safardanas!
Vocês são mariolões, são ratazanas,
Tem bico é certo, mas não tem tonsura… 
E, nas manhas, um melro nunca chega
Às manhãs naturais dum padre-cura.
O melhor vinho que encontrar na adega
É para hoje, olé!… Que bambochata!
Que petisqueira! Melros com chouriço!…
            E então a Fortunata
Que tem um dedo e um jeito para isso!…
Hei-de comer-vos todos um a um,
Lambendo os beiços, com tal gana enfim
Que comendo-vos todos, mesmo assim
Eu fico ainda quase que em jejum!
E depois de vos ter dentro da pança,
            Depois de vos jantar,
Vocês verão como o velhote dança,
Como ele é melro e sabe assobiar!…”

Mas nisto o padre-cura, titubeante,
            Quase desfalecendo,
Atônito de horror, parou diante
            Deste drama estupendo:

O melro, ao ver aproximar o abade,
            Despertou da atonia,
Lançando-se furioso contra a grade
            Do cárcere. Torcia,
Para partir  os ferros da prisão,
Crispando as unhas convulsivamente
            Com a fúria dum leão,
Batalha inútil, desespero ardente!
Quebrou as garras, depenou as asas
            E alucinado, exangue,
            Os olhos como brasas,
Herói febril, a gotejar em sangue,
Partiu num voo arrebatado e louco.
            Trazendo dentro em pouco
Preso no bico um ramo de veneno.
E belo e grande e trágico e sereno
Disse:
            “Meus filhos, a existência é boa
Só quando é livre. A liberdade é a lei.
Prende-se a asa, mas a alma voa…
Ó filhos, voemos pelo azul!… Comei!”

E mais sublime do que Cristo, quando
Morreu na cruz, maior do que Catão,
Matou os quatro filhos, trespassando
Quatro vezes o próprio coração!
Soltou, fitando o abade, uma pungente
Gargalhada de lágrimas, de dor,
E partiu pelo espaço heroicamente,
Indo cair, já morto, de repente
Num barranco com silveirais em flor.

E o velho abade, lívido de espanto,
            Exclamou afinal:
“Tudo que existe é imaculado e é santo!
Há em toda a miséria o mesmo pranto,
E em todo o coração há um grito igual.
Deus semeou de almas o universo todo.
Tudo o que vive ri e canta e chora…
Tudo foi feito com mesmo lodo,
Purificado com a mesma aurora.
Ó mistério sagrado da existência,
            Só hoje te adivinho,
Ao ver que a alma tem a mesma essência,
Pela dor, pelo amor, pela inocência,
Quer guarde um berço, quer proteja um ninho!
Só hoje sei que em toda a criatura.
Desde a mais bela até à mais impura,
Ou numa pomba ou numa fera brava,
Deus habita, Deus sonha, Deus murmura!…
…………………………………….............................
Ah, Deus é bem maior do que eu julgava!…”

E quedou silencioso. O velho mundo,
Das suas crenças antigas, num momento,
Viu-o sumir exausto, moribundo
            Nos abismos sem fundo
Do tenebroso mar do Pensamento.
E chorou e chorou… A Igreja, a Crença.
Rude montanha pavorosa, escura,
Que enchia o globo com a sombra imensa
Dos seus setenta séculos de altura;
O Himalaias de dogmas triunfantes,
Mais eternos que o bronze e que o granito,
Onde aos profetas Deus falava dantes
Entre raios e nuvens trovejantes
Lá dos confins siderais do infinito;
Esse colosso enorme, em dois instantes
Viu-o tremer, fender-se e desabar
            Numa ruína espantosa,
Só de tocar-lhe a asa vaporosa
Duma avezinha tremula, a expirar!…
…………………………………………………. .....
………………………………………………….......
E, arremessando a bíblia, o velho abade 
Murmurou: 
“Há mais fé e há mais verdade 
Há mais Deus com certeza
Nos cardos secos dum rochedo nu
Que nessa bíblia antiga… Ó Natureza,
A única bíblia verdadeira és tu!...”

Espero que também se tenham emocionado com este lindíssimo poema
Eu fico sempre emocionada toda vez  que leio este poema, não tenho mão em mim e choro, choro..


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Lindo! Este vai ser meu. Único. Uma homenagem a todos os melros.

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